Food for Justice: Quão (in)justo é o nosso sistema alimentar?
Renata Motta (HCIAS, Universität Heidelberg) e Facundo Martín (CONICET, Universidad Nacional de Cuyo, Argentina) dedicam-se, em suas pesquisas, ao nosso sistema alimentar, seus impactos socioecológicos e processos de transformação. No dia 10 de julho, eles discutiram no Ibero-Amerikanisches Institut (IAI, Instituto Ibero-Americano) os resultados de um projeto financiado pelo BMBF (agora BMFTR). Os temas foram as desigualdades relacionadas à produção agrícola de alimentos e suas consequências, bem como as correspondentes reivindicações dos movimentos sociais na América Latina e na Europa.

Evento no IAI
Renata Motta (HCIAS, Universität Heidelberg (link externo, abre uma nova janela)) apresentou os resultados de seu projeto Food for Justice: Power, Politics and Food Inequalities in a Bioeconomy (link externo, abre uma nova janela) (BMBF/BMFTR (link externo, abre uma nova janela), 2019-2025) em um evento público no IAI em 10 de julho de 2025, em conversa com Facundo Martín (link externo, abre uma nova janela), que atualmente é pesquisador visitante no IAI.
Um intercâmbio científico sobre o tópico foi realizado em um workshop no IAI em 10 e 11 de julho de 2025.
Os parceiros de cooperação foram a Universität Kassel, (link externo, abre uma nova janela) a Freie Universität Berlin (link externo, abre uma nova janela) e a Alexander von Humboldt-Stiftung (link externo, abre uma nova janela).
Food for Justice: Coalitions for Socioecological Transformation, evento no IAI, 10.07.2025
Renata Motta
Renata Motta (link externo, abre uma nova janela) é professora de “Sociedade, Cultura e Comunicação na América Latina” na Universität Heidelberg (link externo, abre uma nova janela), onde é diretora adjunta do Heidelberg Centrum für Ibero-Amerika-Studien (HCIAS) (link externo, abre uma nova janela). Seu trabalho concentra-se na sociologia política da América Latina, com foco em movimentos sociais, sociologia das desigualdades sociais e gênero.
Food for Justice: Power, Politics and Food Inequalities in a Bioeconomy (link externo, abre uma nova janela) (2019-2025): foi financiado pelo Bundesministerium für Bildung und Forschung (BMBF), agora Bundesministerium für Forschung, Technologie und Raumfahrt (BMFTR) (link externo, abre uma nova janela).
Renata Motta, você dirigiu o projeto de pesquisaFood for Justice: Power, Politics and Food Inequalities in a Bioeconomy. O nome do seu projeto faz alusão ao movimento pela justiça alimentar.
Você poderia nos contar algo sobre esse movimento?
Renata Motta: O food justice movement (movimento pela justiça alimentar) surgiu nos Estados Unidos, inspirando-se nas lutas do movimento pelos direitos civis contra a segregação racial em espaços e serviços públicos, e nos movimentos pela justiça ambiental que denunciavam a contaminação química em comunidades de baixa renda e não brancas.
Os movimentos pela justiça alimentar localizam iniciativas alimentares alternativas dentro dessas comunidades, como por exemplo, feiras de produtores e hortas comunitárias,. Eles visam melhorar o acesso a alimentos saudáveis, frescos e diversificados; apoiar os agricultores locais; criar empregos estáveis e significativos; aumentar as áreas verdes e as possibilidades de lazer.
Qual foi o tema do seu projeto de pesquisa? Quem colaborou?
Renata Motta: A pesquisa tratou dos movimentos sociais como motores de mudança para uma transformação socioecológica na alimentação e na agricultura, com estudos de caso no Brasil, Chile e Alemanha. Ela acompanha coalizões nacionais, regionais e locais em seu envolvimento com o Estado para moldar políticas públicas ou protestar nas ruas; e movimentos alimentares, como agricultura comunitária, conselhos alimentares e movimentos camponeses.
O projeto Food for Justice aprofundou o desenvolvimento conceitual das desigualdades alimentares, a fim de analisar projetos sociais e políticos que abordam as desigualdades baseadas em classe, gênero, raça, etnia, ruralidade, cidadania e divisões categóricas entre humanos e mais-que-humanos. A equipe de pesquisa foi composta por pesquisadores de doutorado e pós-doutorado: Marco Teixeira, Eryka Galindo, Lea Zentgraf, Birgit Peuker, Judith Müller, Mariana Calcagni, Federico Masson, Thalita Kalix, Madalena Meinecke e Carolin Küppers, além de vários alunos de mestrado como assistentes de pesquisa ao longo desses seis anos na Freie Universtität Berlin (link externo, abre uma nova janela) e na Universität Heidelberg (link externo, abre uma nova janela).
O que você descobriu? Quais são as semelhanças e diferenças entre os movimentos Marcha de Margaridas e Wir haben es satt! ?
Renata Motta: Essas são coalizões nacionais que combatem as injustiças no sistema agroalimentar, pressionando o Estado a promover mudanças agrárias e alimentares. A pesquisa se baseou em vários métodos, incluindo dados quantitativos e qualitativos.
O contexto e o histórico organizacional dos dois movimentos sociais são muito diferentes: no Brasil, as mulheres trabalhadoras rurais concentram suas demandas na igualdade de gênero no trabalho e na política, um Estado de bem-estar social forte, reforma agrária e uma vida livre de todas as formas de violência; na Alemanha, ambientalistas, pequenos agricultores, consumidores e organizações de direitos humanos se unem em torno da necessidade de promover a agricultura ecológica, meios de subsistência baseados na agricultura de pequena escala, direitos dos animais e justiça global. Ambos acreditam na democracia e na necessidade de permanecer na luta, ou seja, construir alianças apesar das diferenças.

Facundo Martín

Facundo Martín (link externo, abre uma nova janela) é pesquisador do CONICET e professor da Universidad Nacional de Cuyo (Argentina). Atualmente, é pesquisador visitante no IAI com uma bolsa de pesquisa Georg Forster-Forschungsstipendium (link externo, abre uma nova janela) para Desenvolvimento Sustentável da Alexander von Humboldt-Stiftung (AvH). Suas áreas de especialização são geografia humana, economia agrícola, política agrícola e sociologia agrícola
CONICET: OConsejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicasé uma organização estatal central de pesquisa na Argentina.
Facundo Martín, Você é atualmente bolsista da Alexander von Humboldt-Stiftung (link externo, abre uma nova janela) e pesquisador convidado do IAI com seu projeto de pesquisa The Construction of Agroecological Food Systems in City-regions. Territorial and Socio-political Challenges.
Qual é o tema do seu projeto de pesquisa?
Facundo Martín: A originalidade do projeto reside na compreensão de como as transformações dos sistemas agroalimentares rumo à sustentabilidade geram seus processos de estagnação e convencionalização por meio de uma abordagem multissituada, transdisciplinar e comparativa Norte-Sul. Eu investigo essas questões em duas cidades-regiões onde a transformação para um sistema agroalimentar sustentável se tornou um importante desafio social e político: a Área Metropolitana de Mendoza, na Argentina, e a Região Metropolitana de Berlim-Brandemburgo, na Alemanha. Uma pesquisa empírica e comparativa realizada no “Norte Global” por um estudioso do “Sul Global” traz valiosos desafios epistemológicos e geopolíticos em termos de inovação na pesquisa.
Por que escolheu o IAI para realizar sua pesquisa?
Facundo Martín: Realizei minha pesquisa com Kristina Dietz (link externo, abre uma nova janela) a Universität Kassel (link externo, abre uma nova janela), e Barbara Göbel, o IAI. Como antropóloga interessada em desigualdades ambientais, conflitos por recursos naturais e circulação do conhecimento, Barbara Göbel possui um profundo conhecimento dos desafios alemães e argentinos em torno das transições socioambientais. Além de sua formidável biblioteca, o IAI, como centro interdisciplinar de intercâmbio acadêmico e cultural entre a Alemanha e a América Latina, o Caribe, a Espanha e Portugal, é um lugar imbatível para realizar pesquisas comparativas e transnacionais.
Você pode nos dar uma prévia dos resultados?
Facundo Martín: Os sistemas alimentares de Berlim-Brandemburgo representam uma rede complexa de estruturas, processos e relações heterogêneas, caracterizadas por sub-regimes sobrepostos e concorrentes que coexistem de forma problemática. Esse cenário fragmentado é ainda mais complicado pelas estruturas históricas da terra e pela dinâmica atual, que atuam ativamente contra a consolidação de um sistema alimentar mais justo e equitativo.
Um desafio significativo surge da diferença substancial entre a demanda local por frutas e vegetais e a capacidade real de produção regional, resultando em um sistema alimentar dominado pelo que pode ser caracterizado como “alimentos orgânicos de lugar nenhum” – produtos que atendem aos padrões orgânicos, mas não têm uma conexão significativa com as redes de produção locais. Talvez o mais crítico seja que as vozes e iniciativas dos trabalhadores migrantes e outras classes e grupos “subalternos” permanecem em grande parte opacas e marginalizadas no panorama mais amplo da “questão alimentar” em Brandemburgo, destacando exclusões sistêmicas que perpetuam as desigualdades tanto no acesso aos alimentos quanto na governança do sistema alimentar.
O que a Europa e a América Latina podem aprender uma com a outra?

Renata MottaeFacundo Martín, suas pesquisas sobre reivindicações ou modelos para a transformação socioecológica também estão intimamente relacionada a diferentes aspectos das desigualdades.
Enquanto isso, os parceiros do IAI no Mecila – Maria Sibylla Merian International Centre for Advanced Studies in the Humanities and Social Sciences Conviviality-Inequality in Latin America (link externo, abre uma nova janela) (BMFTR (link externo, abre uma nova janela), 2020-2026) um projeto de pesquisa internacional com sede principal em São Paulo, empregam a conviviality (convivialidade) como um conceito analítico para descrever formas de convivência em contextos específicos, abordando também as consequências das desigualdades.
Uma característica comum aos três projetos é a inclusão de perspectivas da América Latina e da Europa.
O que a Europa e a América Latina podem aprender uma com a outra?
Facundo Martín:Dos sucessos dos movimentos de base agroecológicos da América Latina, a Europa pode extrair reflexões interessantes para a integração de abordagens bottom-up nos marcos políticos estatais. Nesse contexto, são particularmente relevantes as iniciativas educacionais tradicionalmente enraizadas nos movimentos camponeses.
A fusão inovadora da agroecologia com os princípios da economia solidária na América Latina oferece à Europa modelos para a transformação do sistema alimentar que abordem objetivos sociais e ecológicos. A abordagem impulsionada pelos movimentos sociais da região demonstra como construir coalizões que promovam com sucesso a integração agroecológica nas estruturas de governança, proporcionando lições valiosas para os esforços europeus de ampliar práticas alimentares sustentáveis.
Por outro lado, a América Latina pode se beneficiar dos sofisticados quadros políticos da Europa, que integram a sustentabilidade ambiental, a saúde e a equidade em vários setores e escalas. A experiência da Europa com modelos de governança multilateral, mecanismos de coordenação transfronteiriça e inovações nos sistemas alimentares urbanos oferece lições valiosas para as populações em rápida urbanização e os desafios de integração regional da América Latina.
Esse intercâmbio bidirecional de conhecimento — combinando a agroecologia impulsionada pelos movimentos sociais da América Latina com a sofisticação das políticas e as parcerias público-privadas da Europa — cria uma base sólida para enfrentar os desafios globais comuns de segurança alimentar, mudanças climáticas e transformação equitativa do sistema alimentar.
Renata Motta: A Food for Justice (link externo, abre uma nova janela) buscou exemplos contextualizados de mobilização social em torno da alimentação e da agricultura, e as diferenças revelam insights importantes sobre o que um país pode aprender com o outro.
Os movimentos brasileiros têm uma agenda forte em relação à fome e à segurança alimentar. Na Alemanha, foi apenas muito recentemente que os movimentos alimentares começaram a perceber a insegurança alimentar no país, já que antes ela era tratada como uma questão do Sul Global. A justiça de gênero e o feminismo são temas e atores fortes nos movimentos alimentares brasileiros; enquanto na Alemanha as desigualdades de gênero no sistema agroalimentar também são significativas, mas não são objeto de tanta mobilização.
Em contrapartida, os direitos dos animais são um dos temas mais importantes nos movimentos alimentares alemães e quase não aparecem como tema no Brasil, exceto nos movimentos veganos. Em ambos os países, há uma agenda antirracista incipiente nos movimentos alimentares, e isso poderia ser um tema de interesse comum, dada a colonialidade do sistema agroalimentar global.
Desafios globais como uma transformação socioecológica nos sistemas agroalimentares precisam de discussões e conversas contextualizadas e de aprendizagem mútua.
É possível apoiar a mudança também como consumidor individual??
Facundo Martín: Sinto que essa é sempre uma pergunta complicada. Eu responderia: apenas parcialmente. Embora as decisões individuais e cotidianas sobre o consumo de alimentos sejam importantes e até mesmo objeto de pesquisa, a transformação dos sistemas agroalimentares requer políticas coletivas estruturais e ações coletivas.
Renata Motta: Concordo com Facundo. A alimentação é um tema que se presta a várias formas de politização e estratégias de mudança. A transformação das práticas alimentares cotidianas, como a produção, a aquisição com base em critérios políticos e morais (comércio justo, ecológico, etc.), o ato de cozinhar e a alimentação, pode, de fato, gerar efeitos agregados importantese constituir um sinal para dinâmicas de mudança cultural nos mercados e nos Estados.
No entanto, mesmo quando os consumidores mudam seu comportamento alimentar, isso geralmente é resultado de uma ação coletiva, ou seja, de uma transformação cultural que remonta a anos de engajamento social, que identificou problemas sociais específicos, apontou soluções, direcionou a atenção para determinados temas e mobilizou esforços
Muito obrigado a ambos pela entrevista!
[A entrevista foi traduzida do inglês]
Mais informações
- Renata Motta (HCIAS; Universtität Heidelberg) (link externo, abre uma nova janela)
- Facundo Martín (CONICET/Universidad Nacional de Cuyo, Argentinien, AvH-Fellow) (link externo, abre uma nova janela)
- Food for Justice: Power, Politics and Food Inequalities in a Bioeconomy (BMBF | BMFTR, 2019-2025) (link externo, abre uma nova janela)
- Heidelberg Centrum für Ibero-Amerika-Studien (HCIAS), Universität Heidelberg (link externo, abre uma nova janela)
- Freie Universität Berlin (link externo, abre uma nova janela)
- Universität Kassel (link externo, abre uma nova janela)
- Alexander von Humboldt-Stiftung (link externo, abre uma nova janela)
- Bundesministerium für Forschung, Technologie und Raumfahrt (link externo, abre uma nova janela)
- CONICET Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, Argentinien (link externo, abre uma nova janela)
- Mecila – Maria Sibylla Merian International Centre for Advanced Studies in the Humanities and Social Sciences Conviviality-Inequality in Latin America (BMFTR 2020-2026) (link externo, abre uma nova janela)
- Mecila-Teilprojekt des IAI: Medialities of Conviviality and Information Infrastructure (BMFTR 2020-2026) (link externo, abre uma nova janela)
- Pesquisador@s visitantes no IAI (link externo, abre uma nova janela)
- Bolsistas AvH no IAI (Artigo SPKMagazin, 13.08.2024) [em alemão] (link externo, abre uma nova janela)